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Letícia Chamma

A Cidadania no Brasil: Uma Análise do Conceito de “Estadania” de José Murilo de Carvalho



A consolidação da cidadania como se conhece hoje só se deu com o advento da modernidade, isto é, “com o desacoplamento entre as pretensões jurídicas individuais e as atribuições sociais ligadas ao status” (HONNETH, 2003, p. 190), que possibilitou, no século XVIII, o surgimento e a legitimação de novas pretensões jurídicas: os direitos civis, da vida, propriedade e liberdade, sobretudo a individual e igualdade perante a lei. A análise histórica de T. H. Marshall, na Inglaterra, mostra como tais pretensões abrem espaço para outras duas: direitos políticos, referentes ao direito de voto e participação no governo, tendo como base a questão do autogoverno e, os direitos sociais, no que tange a educação, trabalho, saúde, isto é, uma ideia de justiça social. Tal tripartição possui enorme importância, uma vez que, segundo Honneth (2003, p. 189), faz um reconstrução do “nivelamento histórico das diferenças sociais de classe como um progresso gerido de ampliação de direitos individuais fundamentais”.

Aqui, o papel do indivíduo enquanto cidadão está intrinsecamente ligado à exigência por igualdade – que deve ser universal. Ainda segundo Honneth, essa luta social para satisfazer tal exigência juridicamente, ampliou tanto as pretensões jurídicas subjetivas que acabou por abarcar inclusive as desigualdades pré-políticas e econômicas. O ponto fundamental da análise de Marshall, para Honneth (2003, p.191), é que “(...) a imposição de cada nova classe de direitos fundamentais foi sempre forçada historicamente com argumentos referidos de maneira implícita à exigência de ser membro com igual valor da comunidade política.” O princípio da igualdade está, dessa forma, encaixado no direito moderno em que, a o status de pessoa de direito é ampliado, tanto em suas atribuições e características quanto na quantidade de membros da sociedade.

Toma-se, então, como cidadania, a relação entre o Estado e a nação, as formas de identificação da sociedade e de participação na vida política, em busca da manutenção do bem-estar social. Entendendo-se, pois, a construção da cidadania como um fenômeno histórico, não se pode ter tal construção como uma estrutura rígida, mas sim aplicada ao contexto de cada país. A construção e consolidação da cidadania no Brasil pode ser tomada pois, como um grande desafio, esse, até hoje; ligada ao passado colonial, teve como herança o escravismo, como fator mais negativo para a cidadania (CARVALHO, 2001, p.19). O Brasil, dessa forma, apresenta uma particularidade em relação à essa ordem cronológica apresentada por Marshall; invertendo a pirâmide, os direitos sociais foram os que primeiro emergiram, ainda, tiveram maior avanço nos períodos ditatoriais. Devido ao tema da cidadania ser extremamente atual ao nosso contexto, uma vez que se encontram altos índices de desigualdade, violência, pobreza, baixa escolaridade, entre outros, entende-se como fundamental a discussão acerca da sua construção e formação no Brasil.

Segundo José Murilo de Carvalho, a formação histórica da cidadania pode seguir dois caminhos, o de cima para baixo, iniciativa do Estado ou de grupos dominantes ou, o de baixo para cima, iniciativa do cidadão. O Brasil não se encaixa perfeitamente em nenhum dos modelos anteriores, no entanto, pode ser mais bem relacionado ao primeiro. Logo de início, Carvalho já demonstra a essencialidade do peso do passado em sua análise; como legado do período colonial encontra-se uma “população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado absolutista.” (CARVALHO, 2001, p.18). Tal como Caio Prado Jr. que coloca como sentido da colonização o caráter comercial e, Fernando Novais, como sentido mais profundo, seu caráter, também capitalista, a questão para Carvalho, era dada pela essência comercial da colonização que, introduzindo como exigência a necessidade de capital e mão de obra, gerou, respectivamente, desigualdade e a escravização do povo africano.


“A herança colonial pesou mais na área dos direitos civis. O novo país herdou a escravidão, que negava a condição humana do escravo[1], herdou a grande propriedade rural, fechada à ação da lei, e herdou um Estado comprometido com o poder privado.” (ibid. p. 45)

Aqui, a justiça não era vista como garantia dos direitos civis, mas como instrumento de poder pessoal; a confusão do poder do Estado e do poder privado dos proprietários (ou elite) incorpora-se até hoje na ideia de justiça brasileira. A impossibilidade de desenvolvimento da consciência desses direitos é produto do descaso com a educação primária que se vê desde a administração colonial, é claro, no entanto, que não era de interesses dos grandes proprietários que seus escravizados ou dependentes desenvolvessem essa “aram cívica” (ibid. p. 23) A independência não modificou esse panorama, foi fruto da negociação da elite nacional, da coroa portuguesa e da Inglaterra, tendo como figura mediadora D. Pedro I. O povo continuou à parte das decisões políticas; as eleições, segundo Carvalho (2001), tumultuadas e violentas, eram vistas como “espetáculos tragicômicos” (p. 33), os votantes, como “hierárquicos inferiores” (p. 32).


[Voto] “Não se tratava do exercício do autogoverno, do direito de participar na vida política do país. Tratava-se de uma ação estritamente relacionada com as lutas locais. O votante não agia como parte de uma sociedade política, de um partido político, mas como dependente de um chefe local, ao qual obedecia com maior ou menor fidelidade.” (ibid, p. 35)


A forma mais intensa de envolvimento com a nação se deu somente com a Guerra do Paraguai, fator de incentivo à criação de alguma forma de identidade. O Brasil, portanto, legou a tradição cultural ibérica, “alheia ao iluminismo libertário, à ênfase nos direitos naturais, à liberdade individual.” (idib. p. 53); não só inexiste uma identidade nacional, mas também inexiste uma tradição de obediência rígida às leis. Assim, a impossibilidade de cidadãos num Estado Absolutista e uma sociedade em regime escravista acarretaram num paternalismo, tanto por parte dos senhores quanto do governo, impossibilitando a construção de uma “cidadania ativa”. (ibid. p. 51). Só pode ser observado, dessa forma, um avanço nos direitos civis, e uma luta mais organizada pela conquista dos direitos políticos, com o movimento operário, nos anos pós 1930.


“Assim é que os poucos direitos civis conquistados não puderam ser postos a serviço dos direitos políticos. (...) A tradição de maior persistência acabou sendo a que buscava melhorias por meio de aliança com o Estado, por meio de contato direto com os poderes públicos. Tal atitude seria mais bem caracterizada como ‘estadania’.” (ibid. p. 61)


A cidadania, pois, não pode ser vista somente como direito de voto, é preciso levar em conta outras formas de representação. Deve abarcar a integração das pessoas no governo, na sociedade e no patrimônio coletivo, através, respectivamente, da participação política, garantia dos direitos individuais e de justiça social. Apesar de um sentimento nacional, via propaganda do credo nacionalista no Estado Novo, e uma organização política só se consolidarem após os anos 30, os movimentos e revoltas populares devem ser levadas em conta.


“Em todas essas revoltas populares que se deram a partir do início do Segundo Reinado verifica-se que, apesar de não participar da política oficial, de não votar, ou de não ter consciência clara do sentido do voto, a população tinha alguma noção sobre direitos dos cidadãos e deveres do Estado. O Estado era aceito por esses cidadãos, desde que não violasse um pacto implícito de não interferir na sua vida privada, de não desrespeitar seus valores, sobretudo religiosos. (...). Eram, é verdade, movimentos reativos e não propositivos. (...). Mas havia nesses rebeldes um esboço de cidadão, mesmo que em negativo.” (ibid. p. 75)


O Estado brasileiro, dessa forma, não adquire papel de poder público garantidor dos direitos de todos; dependente dos grupos econômicos que estabelecem uma relação em que os bens públicos serão administrados de forma particular, isto é, excluindo a maior parcela da população em nome dos interesses particulares e direitos individuais, se estabelece uma relação clientelista com o Estado, a chamada estadania. Carvalho (2001, p. 215-6) divide a sociedade brasileira, dessa forma, em três classes, a elite privilegiada, os cidadãos simples e os “elementos” do jargão policial; em todos o critério aplicação é o da lei, aos primeiros as “leis ou não existem ou podem ser dobradas”, os da segunda classe “estão sujeitos ao rigores e benefícios da lei”, enquanto que os cidadãos de terceira classe, quase sempre “pardos ou negros, analfabetos, ou com educação fundamental incompleta”, inserem-se na “comunidade política nacional apenas nominalmente”, tendo como validade somente o Código Penal. A desigualdade no Brasil, dessa forma, possui caráter não só regional, mas também racial.

A inversão do caminho para a cidadania, isto é, a garantia primeiro dos direitos sociais, muitas vezes, em detrimento das outras esferas, gerou consequências para o quadro político e institucional brasileiro. Carvalho (2001, p. 221) nota a “excessiva valorização do Poder Executivo”, reforçando a tradição ibérica do patrimonialismo; a ação política voltada para a negociação direta com o governo, “sem passar pela mediação da representação”, isto é, “essa cultura orientada mais para o Estado do que para a representação é o que chamamos de ‘estadania’, em contraste com a cidadania.” Junto a isso, vem a busca por um “messias político, por um salvador da pátria”; a descrença com o governo democrático devido à baixa eficácia do sistema representativo, faz com que a população busque soluções mais rápidas, acabam por depositar suas expectativas em líderes messiânicos ou carismáticos. Além disso, gerou uma crença no corporativismo como forma de alcançar os interesses coletivos; o governo do presidente Vargas foi marcado pelo sindicalismo corporativo.


“Os benefícios sociais não eram tratados como direitos de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo. A sociedade passou a se organizar para garantir os direitos e os privilégios distribuídos pelo Estado.” (ibid. p. 223)

A representação política, dessa forma, não funciona em prol da resolução dos problemas da maior parte da população. “Cria-se uma esquizofrenia política: os eleitores desprezam os políticos, mas continuam votando neles na esperança de benefícios pessoais.” (ibid. p. 224)

“A inversão da sequência dos direitos reforçou entre nós a supremacia do Estado. Se há algo importante a fazer em termos de consolidação democrática, é reforçar a organização da sociedade para dar embasamento social ao político, isto é, para democratizar o poder. A organização da sociedade não precisa e não deve ser feita contra o Estado em si. Ela dever ser feita contra o Estado clientelista, corporativo, colonizado.” (CARVALHO, 2001, p. 227)


Dessa forma, José Murilo de Carvalho aponta a transformação do cidadão para um mero consumidor, afastando-se cada vez mais das questões políticas e de interesse coletivo; como resposta à essa transformação, a ênfase na organização da sociedade civil deve ser colocada como central para que as perspectivas de desenvolvimento da cidadania – e, não estadania – estejam no horizonte de todo cidadão brasileiro. Aponta o Estado, portanto, como fonte de nossa cidadania. A política no Brasil, junto à ordem econômica e social, sempre foi dependente dos interesses individuais ou de grupos hegemônicos; o país possui no seu imaginário social as relações patrimonialistas, clientelistas, de favoritismos, buscando sempre algum salvador da pátria que tirará o país dessa situação de desigualdade econômica e social. A construção da cidadania, no entanto, deve ser entendida como um constante esforço para a formação de cidadãos plenos em todos os âmbitos, a conquista dos direitos civis, políticos e sociais deve ser incessante e resultado da luta dos cidadãos.


Referências Bibliográficas:

CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: 2001.

CARVALHO, J. M. Cidadania, Estadania, Apatia. Jornal do Brasil, 24 de junho de 2001, p. 8. In: ORLANDO, Luis. História sem limites, 27 de março de 2017. Disponível em: (http://historiasemlimites.com.br/wp/cidadania-estadania-apatia-jose-murilo-de-carvalho/)

HONNETH, A. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 1ª ed. Ed. 34. São Paulo: 2003.

MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Ed. Zahar. Rio de Janeiro: 1967.

[1] É interessante ressaltar que o termo escravizado é mais apropriação, uma vez que se trata de uma condição imposta e não natural.


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