Quando a solução é um problema: Automedicação
Fenômeno que chama bastante atenção entre os órgãos responsáveis pela saúde pública no Brasil, a automedicação, identificada como a utilização de medicamentos por conta própria ou por indicação de pessoas não habilitadas para o tratamento de doenças cujos sintomas são “percebidos” pelos usuários, sem a avaliação prévia de um profissional da saúde (ANVISA), acaba por se tornar uma prática banal e frequente entre os brasileiros, configurando uma ação que se estende a todos os níveis sociais e que pode acarretar em graves consequências negativas à saúde.
De acordo com o Sistema nacional de informações tóxico farmacológicas (SINITOX) os medicamentos são responsáveis pelo primeiro lugar no ranking das causas de intoxicação humana no Brasil, e uma monitoração de propagandas realizada pela ANVISA constatou que em cerca de 90% da publicidade de fármacos constam dados e informações erradas acerca dos medicamentos, acarretando em desinformação e falta de orientação sobre os produtos que são anunciados. (MELBY, URDAN, 2009)
Nos é válido ressaltar, ainda, que a agência nacional de vigilância sanitária brasileira lançou, em 2006, um livro explicativo acerca de tal temática, onde evidencia a diferença entre medicamentos e remédios. Para fins conceituais, denomina-se remédio todo e qualquer tipo de cuidado utilizado para curar ou aliviar doenças, sintomas, desconfortos e mal-estar, por exemplo: um banho quente para aliviar o stress, chás e repouso para melhorar de um resfriado. Ao passo que o conceito de medicamento designa substâncias ou preparações elaboradas em farmácias (manipulados) ou em indústrias(medicamentos industriais) que devem seguir determinações legais de segurança, eficácia e qualidade em seu uso.
Frente a um sistema econômico baseado nas relações capitalistas de produção, os medicamentos passam a ser apropriados pela lógica de consumo e aparecem com a característica de serem verdadeiros solucionadores de problemas e desconfortos dentro de uma ordem social cada vez mais degradante e cansativa. A questão que este texto visa abordar reside justamente no estímulo dado a automedicação através de práticas mercadológicas com ênfase na propaganda midiática de fármacos que, muitas vezes, atuando de forma discrepante com a legislatura, acaba por convencer e/ou estimular o consumidor a pensar que a identificação prévia dos sintomas que sentem com os sintomas exibidos nas propagandas veiculadas pela mídia é o suficiente para que se consumam determinadas substâncias, de modo que, no Brasil, as pessoas tenham o hábito de cuidar dos sintomas que sentem ao invés de buscar encontrar as causas profundas de determinados problemas referentes à saúde.
AS PROPAGANDAS
Não podemos ignorar o fato de estarmos expostos a uma realidade cada vez mais extenuante em que os dias, sempre acelerados, parecem não ter horas suficientes para a realização de todas as tarefas que precisamos concluir, aliás, a sensação contínua de que nunca temos tempo sobrando somada as demandas da rotina, fazem com que, cada vez mais, as pessoas procurem estar sentindo-se dispostas e sem dores, isentas de qualquer problema relacionado a saúde, o que seria mais um infortúnio a ser resolvido durante a correria do dia-a-dia. Atrelada a esta realidade cotidiana estão também os imperativos da sociedade contemporânea que pressupõem a necessidade constante de os indivíduos estarem sempre aptos para, dispostos para, ou seja, exigindo das pessoas que sintam-se cada vez e sempre mais “saudável”, “bem”, só que, infelizmente, reverberando em uma concepção de saúde que, para ser atingida, muitas vezes passa pela forma da aquisição dos medicamentos.
Os medicamentos ganham, então, uma função simbólica: a de mercadorias, e em resumo, esta função simbólica pressupõe que a “doença’ ou enfermidade seja considerada um fato que é passível de enfrentamento através da mercadoria remédio que é vista como o único meio cientificamente válido de se obter um valor altamente desejado e que é a saúde (Lefévre,1983)
Partindo deste ponto de vista pesquisas mostram que são grandiosos os recursos de marketing utilizados pelas indústrias farmacêuticas com a finalidade de persuadir e incentivar o consumo de determinado produto, elaborando propagandas que passam por toda a cadeia de circulação dos fármacos, englobando desde o prescritor, o dispensador e chegando, ao final, no usuário de determinada medicação, sendo que, no Brasil, tal indústria, dos quarenta por cento totais que lucra com a venda de seus produtos, trinta e cinco (35%) usa para investir em novas propagandas, ao passo que apenas os cinco por cento (5%) restantes são destinados ao aprimoramento das substâncias envolvidas na fabricação dos fármacos, incentivando a venda de uma medicação mesmo que para isso tenham que criar uma nova necessidade (ANVISA, 2008).
Nesse sentido as propagandas são utilizadas como veículos de divulgação dos “milagrosos” fármacos que possibilitam que a “dor suma”, que a gripe “tenha um fim”, que o xarope seja “divino” e, para isso, vários são os recursos utilizados: da contratação de atores famosos até mesmo a simulação dos problemas diários que grande parte das famílias brasileiras enfrentam.
Promove-se, em todos os canais de comunicação, a ideia de que qualquer sofrimento, dor ou estado, que fuja daquilo que a sociedade institui como “padrão”, constitui um problema inaceitável e que deve ser logo combatido, trazendo, assim, os comprimidos como solução mágica para todos os males (Lefebvre, 1983) formalizando uma sociedade que consome saúde todos os dias e que tem a subjetividade constantemente afetada pelo sentimento de nunca estar sentindo-se totalmente saudável, bem ou em forma. Somos nós, os brasileiros, um exército de consumidores de saúde, tornando nossa sociedade altamente medicalizada.
É importante destacarmos que o conceito de medicalização pode ser definido nos seguintes termos: conversão direta de problemas sociais e morais em doenças que, preferencialmente, devem ser tratadas via fármacos. Nesse sentido, existe uma tendência comum, apreendida entre os estudiosos deste assunto, que diz respeito à percepção de que a medicalização resulta de problemas que muitas vezes são sociais e que ao serem associados ao corpo dos indivíduos, possibilitam uma reformulação destes problemas para o campo médico, sendo a eles atribuídos novos significados como distúrbios, transtornos, obsessões compulsivas e perturbações (HENRIQUES, 2014).
Segundo a Organização mundial da saúde (OMS) e o ministério da saúde (MS), o mercado brasileiro dispõe de mais de trinta e dois mil medicamentos que não necessitam de prescrição médica para ser adquirido, (NASCIMENTO, 2004) o que caracteriza as farmácias e drogarias como estabelecimentos comerciais e não estabelecimentos voltados para a saúde. A ordem é, pois, consumir.
Denominamos consumidores de saúde todos aqueles indivíduos da sociedade brasileira que, inseridos em um complexo contexto de medicalização social e bombardeamento midiático de propagandas, acabam por optar entre a automedicação via ingestão de medicamentos, apesar de desconhecerem as principais fórmulas contidas em tais medicações, qualificando uma prática que além de altamente perigosa, com o auxílio das propagandas, pareça banal.