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Foto do escritorHeloísa Falquete

90 anos de Macunaíma: o herói sem caráter como personificação do movimento Antropofágico.

Por que em 2018 ainda é importante refletir sobre o “herói sem caráter”, alvo de elogios e críticas em torno da noção de cultura que ele representa? Em 2018 a obra Macunaíma, de Mário de Andrade, completa 90 anos desde seu lançamento. Escrito em Araraquara, Mário de Andrade criara Macunaíma nas dependências da atual Chácara Sapucaia, pertencente a UNESP, talvez dentro de uma banheira, como consta a lenda, talvez aproveitando do marasmo araraquarense. Sob um novo olhar na terra que servira de inspiração a Andrade, esse artigo pretende refletir Macunaíma, em seu aniversário de publicação, como a personificação do Movimento Antropofágico.


1) Movimento Modernista: o rompimento com o tradicional e a inauguração do Brasil mítico.


O movimento modernista brasileiro caracterizou-se pelo rompimento com a arte e a literatura tradicionalista, tendo como grande marco de inauguração a Semana de Arte Moderna de 1922. O Modernismo inseriu-se em um contexto histórico de profundas mudanças e insatisfações políticas e econômicas, sendo São Paulo o palco do movimento. Á época, polo industrial do país, diferente do restante do país de características rurais. São Paulo era reflexo do desenvolvimento, cenário das novas indústrias, da maquinaria, do surgimento do “gênero burguês”, advindo do início do processo de industrialização, assim como o surgimento do proletariado, do imigrante e, consequentemente, palco das contradições modernas.

O intuito inicial dos modernistas era recusar a literatura parnasiana e a de linguagem acadêmica, se colocando contra o gosto da época. Como reflexo, vieram às revistas modernistas, como Klaxon, Terra Roxa e Outras Terras. Para a consolidação dessas ideias surge o “Manifesto Pau-brasil” e “Manifesto Antropofágico” de Oswald de Andrade, pregando a necessidade de repensar a figura do brasileiro, o considerando em sua natureza, ficcional e estética, habitante de um Brasil mítico e selvagem, para além da visão triunfante do colonizador. Pode-se dizer que a leitura do Brasil realizada pelos modernistas é de um país poliformo, que se apresentaria sob diversas formas, modificando-se e adaptando-se.


2) Movimento Antropofágico: a deglutição de múltiplas culturas.


O Movimento Antropofágico surge em 1928, sendo a síntese “radical” das reflexões artísticas modernas, propondo uma formação cultural para o país. O Movimento teve entre os líderes Oswald de Andrade com a proposta de “deglutição” das demais culturas e estéticas artísticas. O nome do Movimento faz referencia aos rituais antropofágicos, comuns entre os povos nativos Tupinambás, que praticavam a antropofagia como um ritual de guerra. Este se define pelo ato de consumir a carne dos guerreiros inimigos e absorver, pegar para si, a bravura e a coragem do vencido. Por este motivo, ser devorado era uma das formas mais honráveis de morte.

Nesse sentido, Oswald de Andrade declara que “Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. (OSWALD, 1976). Releva a essência do Movimento: retratar a busca pela consolidação da cultura nacional com base na fusão de todas as suas heterogeneidades e dos opostos da realidade brasileira. A noção de identidade brasileira era até então abstrato devido à herança colonial e as múltiplas culturas e etnias que formaram esta sociedade – muitas vezes massacradas pela História e reprimidas em suas diversas manifestações.

Analisando e defendendo a imagem do índio antes da colonização como o “tipo ideal”, em seu estado mais puro de natureza, Oswald aponta para a importante ligação do mesmo para com o solo, de seus valores que foram soterrados pelos princípios portugueses. O Movimento Antropofágico procurou digerir tanto o que estava dentro, enraizado, como o que vinha de fora do país, a partir da defesa de liberdade de criação e incorporação do vocabulário cotidiano se faz relevante por sua originalidade. Como colocado por Oswald, a Antropofagia é a “transformação permanente do Tabu em totem.” (OSWALD, 1976). Ou seja, transformar o “estranho” em parte significativa da identidade.

Macunaíma pode ser considerado a personificação do Movimento Antropofágico, tornando-se, assim, um dos livros mais importantes da literatura brasileira. Afinal, é nele em que há uma ruptura linguística, mesclando a linguagem urbana e escrita com gírias populares, abandonando a língua rebuscada. Mario de Andrade opta pela linguagem regional e de tradição oral, como termos da cultura indígena.


3) Macunaíma: herói ou anti-herói da nossa gente?


Macunaíma: o herói sem nenhum caráter procurava romper com a realidade, realizar a modernização e a nacionalização da cultura brasileira. No momento inicial do texto, Mario de Andrade descreve as características do herói desde seu nascimento em uma tribo indígena no meio da selva amazônica. “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente”. (ANDRADE, 1970). Descrito como “preto retinto e filho do medo da noite”, Macunaíma ficou mais de seis anos sem falar uma única frase além de “Ai! Que preguiça”. Preguiçoso, passava seus dias monitorando o trabalho dos demais, principalmente de seus dois irmãos, Maanape e Jiguê.

Descrito como interesseiro, só despertava e se colocava de pé para “ganhar vintém”, Macunaíma seria comparado como o reflexo da síntese das heterogeneidades que compõe o homem brasileiro – indivíduo capaz de oscilar entre o bem e o mal, herói e vilão. Deglutindo as formas exteriores e as transformando em vantagem. Por este motivo, Macunaíma pode ser colocado como a personificação do ideal antropofágico, da valorização das raízes da cultura brasileira, da junção de todas as diversidades que compõe esta sociedade em um único personagem.


4) Piaimã: das etnias à cidade grande


No capítulo V do livro chamado “Piaimã” são retratadas passagens fundamentais da obra, como a transformação de Macunaíma em “homem branco” e sua chegada a São Paulo. A caminho da cidade, Macunaíma decide deixar guardada sua consciência em um lugar seguro. Consciência esta ligada à cultura indígena na qual cresceu. A partir daí é possível indagar qual a intenção do personagem: proteger sua cultura de origem dos males da civilização ou deixa-la para trás a fim de se aproximar da figura do homem da cidade grande?

Macunaíma se banha em uma poça d’água, percebendo que esta correspondia a marca do “pezão de Sumé”, que, pela descrição, fora um jesuíta, missionário da catequização indígena, impondo a moral portuguesa. Por esta razão, a água é colocada como encantada, capaz de transformar Macunaíma de negro em branco, loiro e de olhos azuis, um típico homem europeu. Jiguê, seu irmão, ao perceber a transformação também se ariscou, porém, a água já estava escura, conseguindo apenas ficar “da cor do bronze”. Maanape, por sua vez, tentou se lavar com o resto de água que sobrara, continuando negro.

Neste trecho do livro é possível destacar três etnias capazes de formar o indivíduo brasileiro e, consequentemente, a identidade brasileira: o português (colonizador), o índio (catequizado) e o negro (explorado pela formação escravista desta sociedade). Conforme se pode observar na visão do autor, a fusão dessas culturas (europeia, indígena e africana) é capaz de dar origem, a partir de suas heterogeneidades, a cultura a brasileira. Os pássaros que acompanhavam o herói de Mario de Andrade o abandonam ao se aproximar da cidade. Macunaíma, ao adentrar a capital, fica perturbado com as máquinas.

O herói estranha todas as invenções tecnológicas feitas pelos homens, explorando as forças da natureza. Para tentar se adequar a uma realidade diferente da sua utiliza termos de sua cultura para nomear as máquinas. Macunaíma se depara com uma sociedade que perdeu suas raízes em relação à tecnologia e ao “progresso”. Em reflexão, passa uma semana sem comer e sem “brincar”. Conclui, então, que “os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens” (ANDRADE, 1970, p. 40). Desse modo, o protagonista percebe que o homem, apesar de ser o criador da máquina, se tornou submisso a ela no cenário civilizado.


5) Carta pras Icamiabas: o português que se fala é diferente do português que se escreve.


No capítulo, “Carta pras Icamiabas”, Mário de Andrade coloca em prática a feroz crítica à linguagem da Academia, rebuscada e provinciana, e, ao longo do capítulo, deixa explícita a ideia de que a língua falada, coloquial, é diferente da que se escreve. Macunaíma é quem redige a carta às Icamiabas, na forma erudita. Neste capítulo há uma tentativa de Macunaíma se expressar por meio da linguagem culta, tentando se afastar de suas raízes indígenas e se aproximar dos homens da cidade grande. Nessa passagem, Andrade critica a forma rebuscada de escrita a partir da ridicularizarão dessa norma, da hipercorreção, do rebuscamento e do exagero da norma culta.

Mario de Andrade, enquanto Modernista, tem a intenção de ridicularizar as normas cultas da literatura parnasiana e ao homem “letrado”, que não utiliza da linguagem local, abrasileirada. Este homem letrado estaria apenas procurando reproduzir a linguagem que vem de fora. Há, então, uma sátira retratando a relação do homem com a linguagem ao buscar a “perfeição” no rebuscado e provinciano.


CONCLUSÃO:


Pode-se concluir que o intuito inicial dos modernistas, expresso na Semana de Arte Moderna de 1922, era recusar a literatura tradicional e parnasiana. Entre os líderes do Movimento, encontrava-se Oswald e Mario de Andrade, ambos empenhados em construir a cultura brasileira, expandida e ensinada em âmbito nacional. Esta noção de cultura que buscavam estava fortemente relacionada a “Antropofagia”. A noção de cultura antropofágica denunciava que, apesar do país ter conquistado a independência política há mais de um século à época, ainda não havia proclamado a independência cultural.

Essa noção de cultura encontra-se na síntese das várias etnias que compõe a formação da sociedade brasileira (indígena, africana, europeia e imigrante). O símbolo do Movimento Antropofágico seria o índio pré-colonial, aquele que não havia sido corrompido pelo contato europeu. Pode-se dizer que a obra Macunaíma de Mario de Andrade sintetiza, conforme a visão dos modernistas, as heterogeneidades da realidade brasileira, transformando tabu em totem.

Macunaíma pode ser considerado a personificação do Movimento Antropofágico. Afinal, o “herói sem nenhum caráter” buscou retratar o que é o brasileiro: indivíduo que, conforme a obra de Oswald de Andrade, consegue oscilar entre o bem e o mal, o moral e o imoral, o herói e o anti-herói, possuindo um éthos elástico. Podemos refletir se hoje, depois de 90 anos da publicação da obra, a sua atualidade se mantém presente no imaginário que constitui o que é a cultura brasileira e o que é ser brasileiro no século XIX.

Bibliografia:

ANDRADE, M. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. São Paulo: Martins; 1970.

ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.

BOSI, A. Moderno e modernista na literatura brasileira. In: Temas de Ciências Humanas, no 6. São Paulo, 1979.

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